31 de jan. de 2011

A Tela

Não suporto as lágrimas
havia algumas centenas de imbecis
em volta de uma ganso que tinha partido uma perna
enquanto decidiam
o que fazer
quando um polícia apareceu
e sacou seu revolver
e pronto, o assunto estava encerrado
exceto para uma mulher
que saiu correndo de sua barraca
grintando que tinham matado seu animal de estimação
mas o polícia agarrou o seu cinto
e disse-lhe
vai para o raio que te parta,
queixa-se ao presidente da república;
a mulher ficou chorando desconsoladamente
e eu não suporto as lágrimas.

Arrumei a minha tela
e fui para outro campo:
os filhos da mãe haviam estragado
a toda a paisagem.

Buk

24 de jan. de 2011

Sonho

Não ando dormindo bem ultimamente; mas é sobre isso, exatamente, que pretendo falar. É quando parece que vou pegar no sono que acontece. Eu disse “parece que vou pegar no sono” porque não passa disso. De uns tempos pra cá, tenho cada vez mais a impressão, a sensação, de que estou dormindo e, no entanto, no meu sonho eu sonho com meu quarto, que estou dormindo e que tudo está no mesmo lugar onde deixei quando fui pra cama. O jornal caído no chão, a garrafa de cerveja vazia em cima da cômoda, meu único peixinho dourado circulando devagar no fundo do aquário, todas essas coisas tão íntimas que parecem que já fazem parte de mim como o meu cabelo. E muitas vezes, quando NÃO estou dormindo, deitado na cama, olhando pras paredes, cochilando, esperando pra dormir, é freqüente me perguntar: ainda estou acordado ou já peguei no sono e sonho com meu quarto?

Tem acontecido muita coisa ruim ultimamente. Mortes; cavalos correndo mal; dor de dente; hemorragias, sem falar noutras coisas que não convém mencionar. Volta e meia me vem a sensação de que, ora, pior é que não pode ficar. E aí eu penso, bem, pelo menos você tem onde morar. Não anda aí pela rua. Houve tempo em que não me importava com isso. Hoje acharia insuportável. São poucas as coisas que ainda acho suportáveis. Já fui alfinetado, lancetado, é, inclusive bombardeado… com tanta frequência que simplesmente não agüento mais; não conseguiria enfrentar outro fogo cerrado.

Buk - Fabulário Geral do Delírio Cotidiano

21 de jan. de 2011

O grande rebu da maconha

uma noite destas fui a uma reunião - em geral, o tipo do troço chato pra mim. sou, essencialmente, um solitário, um velho beberrão que prefere beber sozinho, talvez com a única esperança de escutar um pouco de Mahler ou Stravínsky no rádio. mas lá estava eu no meio da turba enlouquecedora. não vou explicar o motivo, pois isso já é outra história, talvez mais longa, e mais confusa ainda, porém, ao ficar ali parado, tomando meu vinho, ouvindo o The Doors, os Beatles ou o Airplane, misturados com todo aquele vozerio, percebi que precisava de um cigarro. estava a zero. como sempre, aliás. aí vi aqueles 2 rapazes por perto, braços caídos e oscilando; os corpos frouxos, feito gansos; pescoços girando; os dedos das mãos à vontade - em suma, pareciam feitos de borracha, um elástico que se esticava, puxava e partia. cheguei perto:
- ei, caras, um de vocês tem cigarro?
foi o que bastou pra borracha começar a saltar. fiquei ali parado, olhando, enquanto se entusiasmavam, estalando os dedos e batendo palmas.
- aqui ninguém fuma, bicho! BICHO, a gente não ... fuma.
- não, bicho, a gente não fuma, não desse tipo, não, bicho.
flipflop. flipflap. que nem borracha.
- nós vamos pra M-a-li-buuu, cara! é, nós vamos pra Mallii-bUUUU! bicho, nós vamos pra M-a-li-buuuuuu!
- é isso aí, cara!
- é isso aí, bicho!
flípflap. ou, flapflap.
não podiam me dizer simplesmente que não tinham cigarro. precisavam me impíngir aquele lance de religião: cigarro era pra gente careta. estavam indo pra Malibu, pra algum lugar onde iam "ficar numa boa", curtindo um pouco de erva. faziam lembrar, em certo sentido, essas velhinhas paradas pelas esquinas, vendendo "0 Atalaia". essa turma toda que vai de LSD, STP, maconha, heroína, haxixe, e remédio pra tosse, sofre da comichão d`O Atalaia: você tem que estar na nossa, cara, senão sifu, tá fora. esse lance é permanente e, pelo visto, uma OBRIGAÇÃO com quem usa esses baratos. não admira que a toda hora vão em cana - não sabem ser discretos - com o que lhes dá prazer; têm que APREGOAR que estão por dentro. e, o que é pior, tendem a ligar isso com a Arte, o Sexo, com o ambiente de Protesto. o Deus do Ácido deles, Leary, lhes diz: "desistam da luta. me sigam." aí aluga um auditório aqui na cidade e cobra 5 pratas por cabeça de quem quiser ouvir ele falar. depois chega Ginsberg, junto com ele. e proclama que Bob Dylan é um grande poeta. autopropaganda dos que ganham manchetes posando de maconheíro. América.

mas mudemos de assunto, porque isso também já é outra história. este negócio, do jeito que eu conto, e do jeito que é, tem braços à beça e pouca cabeça. mas, voltando aos rapazes que estão na crista da onda, os cucas de maconha. a linguagem que usam. chocante, bicho. tem tudo a ver. o pedaço. maneiro. bacana. cafona. careta. embalo. de repente. xará. coroa. por aí, e não sei mais o quê. já ouvi essas mesmas frases - ou seja qual for o nome que se queira empregar - quando tinha 12 anos em 1932. deparar com tudo isso de novo, 25 anos depois, não contribui muito pra se simpatizar com o usuário ' ainda mais quando considera que são o que pode haver de atual. grande parte dessa gíria se deriva do pessoal que usava drogas da pesada, a turma da colher e da agulha, e também dos velhos músicos negros das orquestras de jazz. a terminologia dos que estão de fato "por dentro" já mudou, mas os pretensos modernosos, como dupla a quem pedi cigarro - esses ainda falam no estilo de 1932.

Buk - Fabulário Geral do Delírio Cotidiano

Aos fazedores de poemas rápidos e modernos


é muito fácil parecer moderno
enquanto se é o maior idiota jamais nascido;
eu sei; eu joguei fora um material horrível
mas não tão horrível como o que leio nas revistas;
eu tenho uma honestidade interior nascida de putas e hospitais
que não me deixará fingir que sou
uma coisa que não sou-
o que seria um duplo fracasso: o fracasso de uma pessoa
na poesia e o fracasso de uma pessoa
na vida.
e quando você falha na poesia
você erra a vida,
e quando você falha na vida
você nunca nasceu
não importa o nome que sua mãe lhe deu.
as arquibancadas estão cheias de mortos
aclamando um vencedor
esperando um número que os carregue de volta
para a vida,
mas não é tão fácil assim-
tal como no poema
se você está morto
você podia também ser enterrado
e jogar fora a máquina de escrever
e parar de se enganar com
poemas cavalos mulheres a vida:
você está entulhando a saída- portanto saia logo
e desista das
poucas preciosas
páginas.

Buk - Os 25 Melhores Poemas de Charles Bukowski

18 de jan. de 2011

Nova guerra


e pensar que, depois que eu me for,
haverá mais dias para os outros, outros dias,
outras noites.
cães andando, árvores balançando
ao vento
não deixarei tanto.
algo para ler, talvez.
um rebelde na estrada
devastada
Paris às escuras

Buk - Memorias de um velho safado.

3 de jan. de 2011

Showbiz

Eu não aguento isto, você não aguenta isto e nós não vamos compreender isto então não aposte nisto ou nem mesmo pense nisto simplesmente levante-se da cama a cada manhã
lave-se
barbeie-se
vista-se
saia de casa
e aceite isto porque fora isso tudo o que resta é suicídio e loucura
então você simplesmente não pode ter muitas expectativas
você não pode nem ter expectativas
então o que você faz é trabalhar a partir de uma modesta
remuneração mínima como quando você sai
fique contente que seu carro
possivelmente esteja lá
e se está ... fique contente pelos pneus
não estarem furados
então você entra e se ele
dá a partida ... você dá a partida.
e este é o filme mais desgraçado
que você já viu porque você está nele...
cachê baixo e 4 bilhões de críticos
e o período mais longo de exibição
que você já desejou é um dia.

[extraído do livro The Last Night of the Earth Poems (1992), Black
Sparrow Press]

Origem: http://www.traducoesdeumvelhosafado.blogspot.com
(mais uma das belas traduções do velho amigo Athos)